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terça-feira, 1 de setembro de 2009

Salvar Veneza


Em nenhum recanto de Itália existe uma crise mais bem emoldurada do que em Veneza. Não pertencendo à terra nem à água, mas tremeluzindo algures entre ambas, a cidade flutua como uma miragem no meio de uma lagoa situada no topo do Adriático. Durante séculos a fio, a cidade ameaçou desaparecer sob as ondas da acqua alta, as inexoravelmente regulares cheias causadas pela associação cúmplice entre a enchente do mar e o afundamento dos alicerces, mas esse é o menor dos seus problemas. Texto de Cathy Newman; Fotografias de Jodi Cobb

Façam a pergunta ao presidente da câmara Massimo Cacciari, um professor de filosofia pensativo e enérgico, fluente em alemão, latim e grego antigo, tradutor da “Antígona”, de Sófocles, homem que eleva o nível do debate quase até à estratosfera. Questionado sobre o afundamento de Veneza, ele responde: “Ora, comprem botas.” Ou seja, quem quiser que calce as botas. As botas são boas para andar na água, mas inúteis contra a cheia que leva mais gente a torcer as mãos de desespero do que qualquer maré alta na lagoa: a cheia do turismo. Em 2007, havia 60 mil venezianos residentes. No mesmo ano, chegaram 21 milhões de turistas. Em Maio de 2008, por exemplo, num fim-de--semana, 80 mil turistas desceram sobre a cidade, como gafanhotos sobre os campos do Egipto. Os parques de estacionamento em Mestre, a zona continental do município onde se estaciona o automóvel e se apanha o autocarro ou o comboio até ao centro histórico, ficaram sobrelotados. Os turistas que conseguiram entrar em Veneza inundaram as ruas como cardumes, devorando pizzas e gelados e deixando atrás de si um rasto de papel e garrafas de plástico. La Serenissima (“a mais serena”), como Veneza é conhecida, é tudo menos isso. O mundo mergulha na requintadamente talhada pia baptismal da cidade, de guia de viagens na mão e com as fantasias emaladas juntamente com a escova de dentes e os sapatos robustos. Pluf! E lá se vão embora os venezianos. O turismo não é o único factor que contribui para a aceleração do êxodo, mas uma pergunta paira no ar: quem será o último veneziano a ficar na cidade? “Veneza é uma cidade encantadora”, afirmou o director de uma fundação cultural. Da sua janela, podíamos abarcar com o olhar toda a bacia de São Marcos, com a interminável frota de lanchas, gôndolas e vaporetti (os típicos autocarros aquáticos), e a própria praça, epicentro do turismo veneziano. “Na verdade, é um enorme teatro. Quem tiver dinheiro pode alugar um apartamento num palácio do século XVII com criados e fingir queéum aristocrata.” Por favor, aos vossos lugares. Nesta peça de teatro, Veneza desempenha um duplo papel. Existe Veneza, a cidade onde vivem pessoas, e Veneza, a cidade visitada pelos turistas. A luminotecnia, os cenários e os figurinos são belos, mas o enredo é confuso e tem um fim incerto. Uma coisa é certa: todos estão desesperadamente apaixonados pela personagem principal. “A beleza é difícil”, afirmou o presidente da câmara como se falasse perante um seminário de pós-graduação em estética, esquecendo-se que estava a responder a uma pergunta sobre política municipal. Citou Ezra Pound (o poeta americano que está sepultado em Veneza), que, por sua vez, citara a frase de Aubrey Beardsley a William Butler Yeats, numa espécie de jogo literário indirecto. Ser indirecto é tão veneziano como as curvas do Grande Canal.

http://www.nationalgeographic.pt/articulo.jsp?id=1970666

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